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title: Como lidar com incompetentes
subtitle: um manifesto antifascista e RPGista
author: Lu _Cicerone_ Cavalheiro
lang: pt-BR
date: 04/0/2020
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# Como lidar com incompetentes: um manifesto antifascista e RPGista
por Lu _Cicerone_ Cavalheiro[^about]
[^about]: Graduada em Licenciatura Plena em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, servidora pública e escritora. RPGista desde os 13 ou 14 anos, circulou por vários jogos até encontrar-se em Fate. É integrante da equipe do podcast _Fate Masters_ desde 2017.
## Um breve ensaio sobre o fascismo
> "A violência é o último refúgio do incompetente."
> Salvor Hardin
Essa deve ser uma das falas de uma personagem literária que mais citei ao longo de minha vida – e, ao lado do monólogo _Tears on the rain_, uma das minhas passagens ficcionais preferidas. Para aqueles sem a devida familiaridade com o tema, ela é dita mais de uma vez pela personagem citada na _Trilogia da Fundação_, em minha opinião a obra magna de Isaac Asimov. Correndo o risco de revelar demais sobre a trama, Salvor Hardin era o prefeito de Terminus, uma cidade que surgiu ao redor de uma Fundação voltada para a compilação de uma enciclopédia contendo todo o conhecimento até então conhecido. Apesar de ser o prefeito da cidade, seu cargo era subordinado à mesa diretora da Fundação. Em um primeiro momento, ele se vale desse epigrama para dar um golpe de Estado, depor a mesa diretora e garantir a soberania da prefeitura. Em um segundo momento, ainda lançando mão de seu adágio, ele atiça uma revolta popular de proporções gigantescas contra o regente de um reino vizinho que tencionava conquistar Terminus.
Resistindo a tentação de transformar esse manifesto em um ensaio sobre a doutrina Hardin – não muito distinta, pelo menos em sua superestrutura, da abordagem de Theodore Roosevelt de falar manso com um porrete nas mãos, já que Terminus detinha conhecimento da tecnologia relacionada à energia nuclear em meio a reinos que reverteram às técnicas mais bárbaras da geração de energia termoquímica –, urge reconhecer como ela bem descreve um conjunto de fenômenos que manifestaram formas óbvias nos últimos vinte anos: o ressurgimento de ideologias fascistas como discursos dominantes em várias sociedades. O Brasil e os Estados Unidos da América são, tão-somente, os exemplos mais óbvios de uma longa cadeia de eventos que se liga à crise do mercado imobiliário estadunidense na década de 2000 e aos fracassos militares do mesmo país. Vários elementos do fascismo, quase todos um atentado ao pudor da honestidade intelectual e da integridade humana, estão aí, expostos escancaradamente aos olhos de quem quiser ver: o ultranacionalismo, a defesa do grande capital, a idiotização da população, um líder que promete resolver magicamente todos os problemas da nação, uma série de preconceitos e intolerâncias defendidos como "posturas de pessoas de bem", a negação da alteridade do outro, a criação de uma casta privilegiada e de um inimigo externo a ela, responsável por tudo de maligno e ruim no mundo. Não me surpreende que o fascismo institucional seja tão forte nesses países, já que tanto o brasileiro quanto o estadunidense medianos são fascistoides enrustidos que aproveitaram as chances dadas para eleger algum mentecapto que dissesse abertamente o que aqueles creem como sendo a única forma certa de se ver o mundo, mas isso é tema para outra análise e, neste texto, uma digressão inoportuna.
Mas como o ressurgimento do fascismo conecta-se a uma citação literária anterior aos anos 1950? O fascismo enquanto ideologia é tentador: ele mexe com os brios e egos dos homens e mulheres medianos e medíocres, dizendo a eles que a culpa por sua mediocridade é de um inimigo externo que lhes usurpa toda e qualquer chance de sucesso na vida, e que a solução para isso é congregarem-se sob a bandeira de um líder a ser idolatrado como ser semidivino capaz de resolver magicamente todas as mazelas do país, e que a solução para sua medianidade é tornar-se uno com o ideal nacionalista, um super-homem composto por todos os membros de uma casta superior que deveria ser a única detentora de direitos e poderes. O mediano sabe não poder alçar-se à superioridade sozinho, e ressente aqueles que o podem fazer; o medíocre, esse não tem a vontade de potência necessária para tornar-se senhor de sua própria vida. Medianos e medíocres no corpo e na mente, e por isso acreditam no discurso falacioso como verdade inquestionável, voluntariamente reduzindo-se a escravos cujo único propósito é servir e venerar o líder semidivino que elegeram.
E estou eu a citar Nietzsche novamente...
Voltando ao ponto: o mediano e medíocre são incompetentes. E como o fascismo é para eles, segue-se que o fascismo, ele próprio, precisa ser mediano e medíocre, logo incompetente por definição. Quando as soluções mágicas do líder semidivino falham (e elas devem falhar, posto que são totalmente desconectadas da realidade, puros jogos de palavras ideológicos), o líder e sua camarilha agem como as pessoas medianas e medíocres que representam: encontram um culpado externo para ser o ponto focal de todo o ódio, ressentimento e frustração da população. Os nazistas se valeram do antissemitismo europeu para facilitar a empreitada de culpar os judeus; os fascistas da América do século XXI miram seus delírios de fuga da própria responsabilidade contra os negros, a comunidade LGBT, aqueles que tem o espanhol como língua natal (latinos nos Estados Unidos da América, bolivianos, peruanos, paraguaios e cubanos no Brasil) – a lista é suficientemente pública para que ela não precise ser explicitada aqui. E quando até mesmo essa transferência de culpa falha, quando a inocência dos grupos involuntariamente elencados como responsáveis pelo falhanço generalizado é óbvia, os fascistas agem como os incompetentes que são.
Para que não soe como elucubração vazia de minha parte, basta analisar os governos Trump e Bolsonaro. Eles conseguiram afundar as economias de seus países, ao ponto em que os Estados Unidos da América possui indicadores econômicos negativos da época da Grande Depressão de 1929 e a economia interna brasileira apresenta um "desempenho" tão bom quanto o da época do Encilhamento – enquanto os medianos e medíocres pululam defendendo a soberania branca em um país e que o dólar superar a marca dos cinco reais é bom para a economia brasileira, cuja indústria depende de insumos cotados em moeda estrangeira. Quando tornou-se impossível esconder o fracasso econômico, puseram a culpa em inimigos ficcionais, fantasias criadas a partir da coadunação de elementos díspares de um grupo que pudesse ser convenientemente nomeado como o vilão – sejam os _white powers_ estadunidenses ou os escravos e servos do líder semidivino brasileiro bradando "deixem o homem trabalhar", a despeito de ter sido o fato de deixá-lo trabalhar que criou toda a confusão. A pandemia do COVID-19 ofereceu a oportunidade perfeita para que as criaturas subumanas citadas no primeiro período deste parágrafo encontrassem um inimigo mais conveniente, a China – embora Xi Jinping tenha se limitado a exigir reparações diplomáticas, felizmente.
Mas mesmo a culpabilização da China foi incapaz de esconder a incompetência econômica e sanitária dos fascistas. Do alto de seu negacionismo, Bolsonaro faz o país amargar com uma marca de mais de quinhentos mil contaminados com COVID-19 – número assustador quando se considera que as autoridades de saúde pública reconhecem que há uma subnotificação dos casos e que o valor real pode ser quatro ou cinco vezes superior a isso, o que corresponde a mais ou menos um porcento da população do país –, e seria incapaz de enfrentar a pandemia mesmo se quisesse, pois com o dólar na marca dos seis reais não há recursos para a compra dos insumos que realmente funcionariam – embora haja dinheiro público para assegurar o lucro dos bancos e do capital especulativo. Trump, mais sensato, recuou do negacionismo científico, transferindo da China para os negros de seu próprio país a função de servir como ponto focal para o ódio da população mediana e medíocre que o venera.
É claro que os recursos para esconder a incompetência iriam se esvair em algum momento. Para Bolsonaro, eles se esgotaram em 1987, quando ele decidiu planejar a explosão de quartéis do Exército e da Adutora do Guandu a fim de protestar contra os baixos salários que o baixo oficialato do Exército recebia. Seu discurso virulentamente agressivo – uma marca registrada de fascistas, é bom que se diga – deveria soar como sinal de alerta caso fosse proferido para uma população sensata, mas, quando dirigido ao povo brasileiro, cujo elemento mediano é fascistoide até o âmago, não só foi acolhido como aclamado, e isso lhe rendeu a faixa presidencial em 2018. Trump viu seus recursos acabarem por volta de 2019, quando não surgiu nenhuma guerra relevante na qual ele pudesse enfiar os Estados Unidos da América e mover a economia com os motores da indústria bélica.
Claro, eu poderia fazer uma ampla dissertação sobre os líderes fascistas do século XXI, mas creio que os citados sirvam muito bem para ilustrar meu ponto.
Quando não lhes é mais possível disfarçar a incompetência, os fascistas acedem ao seu último refúgio: a violência. Usando um truque relativamente simples de psicologia de massas, o fascismo cria uma dissensão entre os membros da sociedade, apontando alguns como sendo membros de uma casta superior e intocável, autorizada pela lei a agir fora da lei para punir os responsáveis pelo fracasso do líder divino, que convenientemente são todos os membros da sociedade que não pertencem à tal casta. O líder semidivino transfere aos seus servos o poder e o direito de exercer a violência contra seus opositores ao mesmo tempo em que se exime de ter de exercê-la ele próprio, um passo normalmente acompanhado pelo empoderamento das forças de segurança pública ao ponto destas poderem, também, agir acima de todo e qualquer verniz de legalidade. Quando um grupo de supostos culpados for eliminado, o líder semidivino apontará um outro grupo, que seus servos e bronzes eliminarão em seu nome, e assim se procederá até que algum milagre traga a solução para a confusão e para a crise (pois o fascista por definição é incompetente demais para criar a solução ele próprio) ou que comece a autofagocitação da casta superior.
Entretanto, se a violência é o último refúgio do incompetente, isso não quer dizer que ele seja capaz de usá-la eficientemente. Muito pelo contrário: o incompetente é tão incompetente no uso da violência quanto nas demais coisas. Quando os fascistas recorrem à violência, seja esta física, econômica, moral, ou de outro tipo, o desespero é aparente e evidente: se todo o resto falhou, os fascistas serão violentos contra quem é capaz de ver que eles falharam, pois se ninguém disser que eles estão errados, então eles não estarão errados.
## O Manifesto Antifascista de Lu _Cicerone_ Cavalheiro
Muito me preocupa e entristece saber que foi preciso que um homem fosse brutal e covardemente assassinado por policiais estadunidenses para gerar essa percepção. Estamos tão anestesiados pelo fascismo institucional para que apenas algo tão drástico acordasse o ser humano que há dentro de cada um de nós? Ser antifascista é dever moral do ser humano, mas só agora, quando uma vida foi irremediavelmente perdida para os porcos e bronzes e canalhas que se empoderam por trás de uma farda, de um distintivo, de uma instituição, de um presidente fascista, é que as pessoas se declaram antifascistas? Onde todos esses antifascistas estavam quando da eleição dos fascistas? Quando eles vomitavam suas intolerâncias em público, onde esses antifascistas estavam para rebatê-las?
Como anarquista, faço essas perguntas há anos.
Como anarquista, eu abraço todos os que hoje se dizem antifascistas e os chamo de irmãos e irmãs sob a mesma bandeira vermelha e preta – menos os autointitulados anarcocapitalistas, pois eles são tão fascistas quanto os porcos e bronzes e canalhas que mataram George Floyd.
Como anarquista, eu vejo os fascistas, seres tão incompetentes que são incapazes de ludibriar o povo que governam a fim de que eles não se rebelem, eu vejo os sonhos dourados deles – o liberalismo, a proteção do grande capital, a redução do pobre à semi-servidão – se desmancharem sozinhos, incapazes de se sustentarem na realidade, e sorrio.
Como anarquista, vejo uma luz de esperança no fim do túnel.
Essa luz se chama antifascismo.
De maneira sucinta, ser antifascista é ser humano. Se você é contra a discriminação, se você é contra o preconceito, se você é contra a tirania, se você é contra a opressão, se você é contra a exploração do trabalhador, se você é contra os direitos sem deveres do grande capital, se você é contra os deveres sem direitos do proletariado, se você é contra a falta de dignidade que o capitalismo impõe à vida de incontáveis pessoas – enfim, se você é humano, você é antifascista.
Se você é humano, você repudia toda e qualquer forma de discriminação, de intolerância, de preconceito, de abuso, de violência. Se você é humano, você sabe que todos somos iguais, não importa a cor da pele, a textura do cabelo, a sexualidade, a religiosidade ou a residência. Se você é humano, ao seu redor você vê pessoas iguais a você, não outros. Se você é humano, se você é antifascista, você é meu irmão ou irmã.
Se você não é humano, você é violento. Você discrimina o outro, você nega a alteridade ou a dignidade do outro, você é preconceituoso, você acredita que apenas as pessoas que são como você, que pensam como você, que falam como você, que veneram o mesmo líder semidivino que você, merecem ter direitos. Se você faz isso, você não é humano. Você é fascista. Você é opressor. Você não é meu irmão ou irmã.
Se você não se posiciona sobre a questão, se você acha que é preciso haver um ponto de equilíbrio entre o antifascismo e o fascismo, você é uma pessoa omissa, neutra, isenta. Para você, deixo uma das citações mais famosas de Desdemond Tutu: _quando você diz que é neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor_.
Como um ser humano, repudio veementemente quaisquer atos, ações, ideias ou ideologias que não sejam humanas. Como antifascista, condeno explicitamente toda e qualquer forma de fascismo ou nazismo, seja ele físico, ético, moral, institucional, não importa. Como anarquista, estou aqui para derrubar toda e qualquer forma de fascismo ou nazismo, para garantir que o mundo seja um lugar humano.
## Antifascismo no RPG
O RPG deveria ser, por definição e por necessidade, o hobby mais inclusivo e antifascista existente. Para que seja possível você explorar e experimentar a vida de uma personagem por algumas horas, é preciso que você esteja em um ambiente seguro para realizar essa exploração. Como um homem cisgênero se interessará interpretar uma personagem feminina se ele souber que será alvo de chacotas? Como um jogador transexual conseguirá jogar se os demais jogadores acreditarem na falácia insana – posto que não apenas não é sustentada pela ciência como é defendida apenas por fascistas e neopentecostais – de que transexualidade é uma "ideologia de gênero"?
Não é, porém, o que verificamos empiricamente. Especialmente entre os jogadores da chamada _velha escola_, a quantidade de fascistoides é assustadoramente grande. _Dungeons and Dragons_, por exemplo, em seu design é um jogo elitista voltado para representação da colonização e subjugação de culturas com fortes elementos de _os grandes salvadores brancos_, e é especialmente atrativo para o homem heterossexual fascistoide por essa razão. A _nova escola_, representada principalmente por _Fate_ e por _Apocalypse World_, também padece desse mal, embora em uma escala muito menor, já que existe uma preocupação intrínseca com inclusividade – para citar o exemplo de _Fate_, a Evil Hat tem como política não tratar de um assunto se ele não puder ser tratado de maneira respeitosa.
Tristemente, os círculos de RPGistas no Brasil são muito tóxicos e povoados por fascistoides. Desde o jogador abertamente bolsonarista até o "isentão" que acha que RPG não é um lugar para discutir política e demais fenômenos sociais, o fascismo impera no nosso meio também. São pessoas que não entenderam a proposta ulterior do hobby: explorar e experimentar a vida de uma personagem de modo inclusivo e seguro. Trazem seus preconceitos, suas intolerâncias e seus discursos de ódio para a mesa de jogo, e estragam a diversão de todos os seres humanos ali presentes.
Citando a chamada _lei de Olivia Hill_: _se você é fascista, RPG não é um jogo para você_. Vá fazer outra coisa da vida. Não estrague a diversão dos demais seres humanos. Quando você virar um ser humano, venha jogar RPG, você será mais do que bem-vindo. Enquanto você for um fascista, porém, mantenha-se longe: RPG não é para você.