MEMÓRIAS DE UM BÊBADO: uma introdução apropriada
Lu Cavalheiro
O velho Farnhan roncou mais uma vez, o único testemunho de que alguma vida ainda se agarrava àquela carcaça semi-decomposta pelo abuso de álcool e pelos maus hábitos. Sua caneca rolou vazia para o chão, e entre os ruídos que fugiam de sua boca o fedor de cerveja e doença golpeavam as narinas com uma violência impublicável, denunciando a natureza de seu conteúdo. Em breve, todos sabiam, ele cairia de sua cadeira, e os homens o carregariam gentilmente para algum canto fora da taverna para que ele pudesse dormir sem ofender os olhos – e o olfato – dos demais frequentadores.
Todos sabiam disso, mas ninguém parecia se importar. Farnhan se tornara uma ruína de ser humano bem diante dos olhos de todos, mas para os moradores de Refúgio, a cidade que os Pais Pioneiros fundaram na Ravina Alta, o estado atual do pobre diabo era mais uma dos fatos da vida – tão certo e de igual natureza quanto o nascer ou o poer do sol todos os dias. As pessoas bebiam e conversavam ao redor do homem, sem nem mesmo notar que ele estava ali, e, de tão habituados que estavam a agir dessa forma, nem mesmo o bafo de cerveja doentio lhes incomodava. Para todos os efeitos, o homem era apenas uma peça de mobília feia demais para ser notada mas estimada demais para simplesmente ser atirada fora.
Quando o sacolejar da cadeira começou, todos se preparavam para o próximo evento de sua rotina quase diária. Os homens mais sóbrios já se levantavam de suas cadeiras e se preparavam para apanhar Farnhan antes que ele caísse no chão, e os menos sóbrios já abriam a porta e procuravam quais dos cantos de sempre estavam disponíveis. As mulheres davam de ombros, enquanto Ogden, o taverneiro, murmurava indistintamente para si, seus olhos pousados no bêbado que, em um passado muito distante no qual ele era mais um dos homens sóbrios a pôr os bêbados para fora, um dia fora seu amigo.
Entretanto, Farnhan surpreendeu a todos endireitando-se em sua cadeira. Seus olhos perderam o brilho emaciado típico, tornando-se vívidos e cheios apesar de focarem algum ponto indistinto perdido no infinito. Sua barba e cabelos desgrenhados, que normalmente eram um convite à piedade, deram a ele o ar assustador da senilidade ameaçadora que emana dos loucos mais perigosos. Suas mãos, que normalmente mal conseguiam segurar a caneca de bebida sem derramar mais da metade do conteúdo no balcão, tornaram-se firmes, e uma delas exibia um dedo acusador em riste, apontando para todos e para ninguém e para alguém que estava muito distante, no limiar do alcance da visão. Ogden fez menção de que iria falar, mas o mesmo dedo de Farnhan foi o suficiente para silenciá-lo com um gesto mais apropriado a alguém nascido para mandar do que a um bêbado incorrigível cuja aparência suscitava nada além de pena nas pessoas.